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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

MADAME MERKEL E OS SEUS “CONTRATOS”


É característico, a bem dizer é sintomático, que Madame Merkel, a partir de agora a Chanceler à frente de um governo "de grande coligação" na Alemanha, tenha podido declarar no passado dia 19 de Dezembro, a propósito do euro, sem provocar uma emoção especial na imprensa que; "Mais tarde ou mais cedo, a moeda explodirá, sem a coesão necessária" [1] . À primeira vista, esta declaração é perfeitamente justa. Sem "coesão", ou seja, sem a existência de um sistema de transferências financeiras extremamente importantes, o euro não é viável. Isso já se sabe, e o cálculo do que seria necessário consagrar para que o sistema federal funcione já foi feito por vários autores. Pela minha parte, calculei o montante que a Alemanha deveria fornecer: entre 8% a 10% do seu PIB. [2] É perfeitamente óbvio que ela não pode fazer isso sem destruir o seu "modelo" económico e, desse ponto de vista, exigir da Alemanha uma "solidariedade" com os países da Europa do Sul no valor de 220 a 232 mil milhões de euros por ano (aos preços de 2010) é o mesmo que pedir-lhe que se suicide. [3] 

Mas o que é muito mais interessante é a continuação desta declaração. Madame Merkel, perfeitamente consciente de que os países da zona euro estão relutantes perante novas cedências de soberania, propõe "contratos" entre estes últimos e a Alemanha. Vendo bem as coisas, isso levaria a construir, ao lado das instituições europeias, um outro sistema institucional, ou, visto que um contrato para os alemães tem o valor de uma lei, os diversos países ficariam ligados à Alemanha de modo vinculativo. Percebemos bem o interesse desta fórmula. Madame Merkel não alimenta quaisquer ilusões quanto a um "povo europeu" qualquer. Sabe muito bem o que pensa sobre isso o tribunal constitucional de Karlsruhe que, sobre esta matéria, foi muito claro no seu acórdão de 30 de Junho de 2009. [4] É importante perceber que, para o tribunal de Karlsruhe, a UE é apenas uma organização internacional cuja ordem é derivada, porque são os Estados os donos dos tratados. [5]Deste ponto de vista, é óbvio que a Alemanha não partilha, e não partilhará num futuro próximo, da visão confusa de um "federalismo" europeu. Para os dirigentes alemães, não havendo um "povo" europeu, o que é lógico para o conceito germânico do que é um "povo", não pode haver um Estado supra-nacional. Em contrapartida, a União Europeia e a zona euro podem exercer um poder derivado. Mas, desse ponto de vista, a Alemanha também o pode fazer. E é esse o sentido dos "contratos" propostos por Madame Merkel aos seus parceiros. Em troca de uma garantia de soberania, porque aceitamos "livremente" estes "contratos", comprometemo-nos a respeitar certas regras vinculativas numa estrutura de contratos que nos ligam à Alemanha. 

A questão da União bancária, saudada recentemente ao som de trombetas, confirma esta iniciativa. No Outono de 2012, os países do Sul da zona euro tinham, concertadamente com a França, conseguido o princípio de uma "União bancária" que devia ser simultaneamente um mecanismo de vigilância e de regulação dos bancos da zona euro, mas também um mecanismo que garantisse uma gestão concertada das crises bancárias. Ainda não havia secado a tinta deste acordo, já a Alemanha fazia tudo para o esvaziar de toda a substância. E, bem entendido, conseguiu os seus fins. O acordo que foi assinado na noite de 18 para 19 de Dezembro de 2013, e que foi saudado por alguns como "um passo decisivo para o euro" [6] não regulamentou absolutamente nada. [7] O mecanismo de supervisão só abrange 128 bancos dos 6 000 que existem na zona euro. Quanto ao fundo de resolução das crises, só atingirá o montante de 60 mil milhões, uma soma que, de resto, é ridiculamente pobre, em… 2026! 

O que concluir de tudo isto? 

Primeiro que tudo, não vale a pena continuar a pôr qualquer esperança numa Europa "realmente" federal e é profundamente enganador continuar a apresentar essa possibilidade como uma alternativa à UE tal como ela funciona hoje. Este discurso é profundamente mentiroso e só pode contribuir para nos enterrar um pouco mais na desgraça. Não haverá Europa federal porque, na verdade, ninguém a deseja realmente e ninguém está disposto a fazê-la. Portanto, opor à situação actual uma "perspectiva federal", que de resto é perfeitamente hipotética e cuja probabilidade de realização é menor do que um desembarque de marcianos, já não faz qualquer sentido, a não ser enganar o incauto e dar-lhe a comer gato por lebre! O sonho federalista afinal era um pesadelo. Portanto, o melhor é acordar. 

Em segundo lugar, a Alemanha está perfeitamente consciente de que é necessária uma forma de federalismo para a sobrevivência do euro, mas não quer – e isso é perfeitamente compreensível – pagar o seu preço. Portanto, o que propõe de facto aos seus parceiros são "contratos" que os levarão a suportar a totalidade dos custos de ajustamentos necessários para a sobrevivência do euro enquanto ela própria será a única a tirar proveito da moeda única. Mas esses "contratos" mergulharão o Sul da Europa e a França numa recessão histórica, de que esses países sairão retalhados social e industrialmente. Aceitar esses contratos será a morte rápida da França e dos países do Sul da Europa. Laurent Faibis e Olivier Passet acabam de publicar uma tribuna em Les Échos que convém ler com atenção. [8] Explicam porque é que o euro só pode aproveitar a um país que se instalou no topo da cadeia industrial, e porque é que, em vez de pôr o euro ao serviço da economia, é a economia que é sacrificada em proveito do euro. Esta situação será eternizada se, por infelicidade, tivermos um governo que aceite submeter-se aos "contratos" de Madame Merkel. 

Em terceiro lugar, é preciso ler nas entrelinhas, o que está implícito na declaração de Madame Merkel. Visto que não é possível uma Europa federal e na realidade nem sequer é concebível do ponto de vista alemão, e se não se conseguir uma "coerência", que mais não é que o aceitar a totalidade das condições alemãs, então a Alemanha está disposta a fazer o luto pelo euro. Madame Merkel gostaria de fazer desta alternativa uma ameaça para nos forçar a aceitar a ideia dos seus "contratos". Pelo contrário, devemos levá-la à letra e propor-lhe a dissolução da zona euro o mais depressa possível. Mas, para isso, seria necessário outro governo e outro primeiro-ministro, diferentes daqueles que temos. 

Em certo sentido as declarações de Madame Merkel são inauditas. Talvez pela primeira vez, desde 1945, um dirigente alemão expõe assim tão cruamente o projecto de domínio da Europa pela Alemanha. Mas estas declarações têm, no entanto, a enorme vantagem de lançar uma luz crua sobre a nossa situação. Devíamos lembrar-nos disso e inspirarmo-nos nisso aquando das próximas eleições europeias. Não para obedecer a Madame Merkel, mas para levá-la à letra e dizer-lhe que, quanto ao seu euro, já não o queremos!