A paisagem depois das batalhas. (Eleitorais)?...
Depois de ter começado por surpreender e alimentar expectativas com a sua vitória nas europeias, o PSD termina o ciclo eleitoral como indiscutível derrotado, enquanto o PS consegue demonstrar uma notável capacidade de resistência e recuperação: perdeu a maioria absoluta no Parlamento, mas ultrapassou por margem confortável o concorrente directo e evidenciou uma vitalidade inesperada nas autárquicas – com o reforço genérico da sua implantação local.
O Parlamento fragmentou-se, mas o poder autárquico – que é por natureza o mais fragmentado de todos – repôs a bipolarização interrompida no quadro do poder central. E os dois partidos que melhor tinham cavalgado a onda do descontentamento com as políticas do Governo anterior – o CDS, primeiro vencedor das legislativas, e o Bloco – viram comprovado o seu défice crónico de raízes locais.
O CDS serviu de muleta útil ao PSD, mas isso não foi suficiente para ajudar a reconquistar Lisboa, por exemplo, e ficou patente que, a concorrer sozinho, continua limitado à fortaleza solitária de Ponte de Lima (tal como o Bloco se vê reduzido ao enclave de Salvaterra de Magos).
Se o CDS e o Bloco se mantêm marginais no plano local, o PCP conserva a sua tradicional implantação autárquica mas já sem poder disfarçar a tendência para a estagnação e declínio (foi vítima do voto útil a favor do PS, nomeadamente em Beja e Lisboa). As eleições autárquicas constituíram, assim, uma espécie de prova dos nove da realidade política do país – projectando-se, apesar da natureza diversa dos actos eleitorais, no outro acto que imediatamente se segue: a formação do novo Governo.
Apesar da condição minoritária do Executivo, obrigando Sócrates a uma navegação árdua entre vagas alterosas e ventos contrários, a maior votação nacional obtida nas autárquicas empresta ao PS um suplemento de legitimidade política que reforça a sua afirmação no teatro do poder central.
Mas há duas questões que, para já, condicionam todas as outras. Primeira: como irá Sócrates reinventar-se no novo papel ‘dialogante’ que insistentemente reclama, sabendo-se que isso não corresponde, de todo, às características da sua personalidade? Segunda: que irá suceder ao segundo maior partido, um PSD ameaçado de implosão?
Como se tornou perfeitamente claro – e até os resultados das europeias, embora inesperados e reconfortantes, não permitem iludi-lo –, a crise ‘laranja’ não é apenas de liderança e quadros dirigentes mas também de (in)definição ideológica e programática, estilo de intervenção e, last but not least, de relação com a sociedade (quando se aproxima o fim do ciclo dos dinossauros autárquicos que personificavam, em larga medida, as redes clientelares do partido).
O inevitável fim do ferreirismo – cujo adiamento só irá agravar a situação – reflecte, de resto, outro fenómeno mais profundo que persegue o PSD como um fantasma: o do próprio Cavaquismo.
Ferreira Leite representou uma tentativa frustrada de ressurreição da herança Cavaquista. Mas o grande problema é a fixação doentia do PSD na memória mítica das maiorias absolutas de Cavaco. Isso explica a instabilidade permanente das suas lideranças e tem sido o principal obstáculo à emancipação e clarificação da identidade do partido.
Além disso, o persistente silêncio e a intervenção tardia do Presidente da República sobre o chamado caso das escutas acabaram por ligar intimamente Cavaco à sorte eleitoral do PSD. Esse ‘esclarecimento’ patético e fora de tempo só agravou as suspeitas existentes sobre o seu conhecimento prévio do caso (o que se tornou ainda mais notório depois dos testemunhos de alguns directores de jornais no último Prós e Contras da RTP).
A fragilização da autoridade do Presidente da República, a agonia do Ferreirismo e a ameaça de implosão do PSD mostram-se, assim, indissociáveis. A campanha da ‘asfixia democrática’ e o caso das escutas são duas faces da mesma moeda, um enredo que a rigidez e inabilidade de Ferreira Leite só contribuíram para tornar um mortífero boomerang eleitoral e colocar o PSD perante uma decisiva prova de vida.
Verdadeiramente novo para o PS – e um aviso claro para Sócrates – foi a maioria absoluta conseguida em Lisboa pela lista de António Costa. Embora arrancada a ferros e tendo ainda em conta a assinalável performance pessoal de Santana Lopes, essa vitória aponta para uma nova síntese entre o PS e correntes informais da esquerda, ultrapassando a fatalidade de coligações com o PCP e o Bloco. Talvez se encontre aí, se Costa estiver à altura do desafio, um outro início de mutação da paisagem política, na eventualidade de Sócrates não ser capaz de navegar no mar revolto dos tempos que se seguem.
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