O QUE É A GUERRA – RELATO DE QUEM A VIVEU
Baseado em factos verídicos mas alterados propositadamente para proteger os seus intervenientes. Já nada voltará a se como dantes!
(Para quem nunca viveu a guerra os relatos dos veteranos são essenciais. Não serão certamente as únicas fontes, mas são as mais importantes. Os relatos dos acontecimentos vividos em África são a única forma de nos transportarmos a um mundo que não conhecemos e onde nunca vivemos. Um mundo que não morreu e que existe, e existirá até o último veterano morrer. Só nesse dia a guerra acabará.) Uma coluna avança pausadamente pela picada. Devagar, quase paradas, as viaturas vão seguindo o trilho das rodas daquelas que se anteciparam na caminhada. Uma explosão faz os sentidos dos homens actuar como foram treinados para fazer. O salto da viatura, a posição de combate, ver sem ser visto, vislumbrar de onde vêm os disparos. Depois tudo passa. O silêncio, a princípio duvidoso, depois já de certeza feito, baixa sobre o lugar. É tempo de ajudar os camaradas sem a mesma sorte, os que a arbitrariedade da guerra determinou que fossem hoje os escolhidos. Pedir evacuação, injectar morfina, balbuciar uma palavra de conforto em que ninguém verdadeiramente acredita. Depois o ruído dos helicópteros desaparece aos poucos, e a coluna reorganiza-se. As dúvidas assaltam os que ficaram. Porquê ele, e não eu? Será que Deus existe mesmo? A medalha que minha mãe me deu é um talismã ou é uma forma de exorcizar o medo? Ainda há poucas horas o meu camarada me estendeu o aerograma da mulher, o filho nascera bem. E agora? Agora tudo terminou. Uma sensação de impotência, de incapacidade, assola os militares. Não há nada a fazer. Tudo o que foi feito, sonhado, conversado, foi em vão. Inutilidade. O bilhete de Identidade regista 21 anos, mas de repente, passamos a ter 40. Um mundo acabou, vai começar outro, com muito menos espaço para a ingenuidade, com quase nenhum espaço para a paz interior. “Já nada voltará a ser como dantes!”. Os pensamentos são cortados pelos barulhos da coluna em marcha. A operação continua, não para nunca. A noite caiu, o lugar para dormir foi escolhido, a segurança montada. E agora? Atacarão de noite? A chuva diluviana não limpa a alma. O camarada agora vive lá. A necessidade de desforra cresce. O inimigo é, sem tempo para mais reflexões, o culpado. Ao outro dia, o trilho, o silêncio da aproximação, a dúvida de quantos dias mais teremos à frente. Os ruídos do acampamento já próximo, a adrenalina a crescer no peito, a contracção dos músculos, o olhar de lince. Ao sinal a explosão, o ataque, disparos, a adrenalina esvai-se em cada movimento. O dedo fica dormente de tanto carregar no gatilho. O inimigo debandou, estou bem, ainda não foi hoje. Há que agir rápido, levar o que se puder, destruir o que não se pode levar. No meio da correria, imagens de corpos atravessados por balas. De onde saíram estas balas? Fui eu? Foi o camarada que estava à minha direita? Foi o outro pelotão? Um corpo mais pequeno mostra-nos que a arbitrariedade da guerra é cruel. Passou sem olhar. O cheiro do fumo, da poeira misturada com suor, do sangue, inebria o combatente. Afasta-se, uma ordem indica-lhe que tem de perseguir um inimigo que deixa um rasto de sangue. Não anda muito. O guerrilheiro está a poucos metros, arrastou-se como pôde. Os ferimentos são graves. Não fala, não se mexe, apenas se sente o seu peito arfar. Os combatentes que chegam não falam, olham apenas. A solução está na cabeça de todos, não carece de explicação. A evacuação é inútil, a área é densamente arborizada, arrastar o corpo até uma clareira, e esperar a evacuação é inútil, o guerrilheiro não sobreviverá. Alguém tem de resolver o assunto. O oficial entende que é seu dever fazê-lo. Alivia a consciência com o pensamento de que ali, naquelas circunstâncias, é o melhor, é até o mais humano que há a fazer. A atitude que ajudará o guerrilheiro é acabar com o seu sofrimento. Para ele “Já nada voltará a ser como dantes!” Volta a organizar-se a longa cobra que os militares formam. Às cavalitas de um furriel, uma criança salva no meio do acampamento. Na hora do mata-bicho todos se esforçam para dar ao menino a sua lata de leite com chocolate. A criança conta poucos meses, e olha surpreendida para os rostos que nunca viu. Surpreendida e inconsciente do que se passou. Ainda não sabe que a partir daquele instante, também na sua vida “Já nada voltará a ser como dantes!”. A noite cai. O acampamento do segundo dia é formado. Sempre a mesma rotina. O miúdo mostra-se agora mais confiante. A meio da noite um choro, um berreiro. Mais lata de leite com chocolate para agradar ao miúdo. Não resulta. No meio dos barulhos da mata, aquele pode denunciar o grupo. Os militares têm 21, 22, 23 anos. Não são pais, nunca trataram de crianças, não sabem o que fazer. Ao fim de alguns minutos já todos perceberam que aquilo não pode continuar. Um barulho seco, rápido, soa na noite. Os militares são experientes, sabem que vão ser “abonados” com granadas de morteiro. Os corações suspendem-se e a explosão dá-se longe do local. O inimigo não atinou bem com o sítio. A explosão só piorou o estado de ansiedade da criança. Os nervos retesam-se. A solução está na cabeça de todos. Outro estalido, segundos depois outra explosão, ainda longe do lugar. Se o miúdo não se calar morrem todos, se ele se calar, foi porque morreu ele. “Já nada voltará a ser como dantes!”.
Militares do B.CAÇ. 1891 Chegam a Lisboa a bordo do Paquete Vera Cruz. |
O militar está de regresso. O navio encosta à amurada. Os familiares estão lá em baixo, ainda não o distinguiram na massa verde que ocupa o passadiço do navio. Mas ele já os viu. Sem perceber porquê, as lágrimas escorrem-lhe pela face, incontrolávelmente. Uma emoção que não controla, uma mistura de alegria por estar vivo, de encontrar os seus bem. Mas a alegria ganhou um novo sabor. Tem um travo a picada, a rostos que não estão. A ausência, a despedida na chegada. Até a alegria “Já voltará a ser como dantes!”. A rotina ajuda a abafar a memória. A manhã está clara, o ex-combatente segue o seu percurso para o trabalho. É hoje um homem um pouco mais velho, casado, pai de filhos. A guerra acabou, escreveram os jornais há poucos meses. Ele esforçou-se por acreditar que sim. Mas as suas noites brancas lembram-lhe que não. Os sonhos onde ruídos e imagens lhe trazem à mente o que julgou ter acabado. Um sonho em especial visita-o sazonalmente. Um resto de camuflado, com um resto do que ainda há pouco estava cheio de vida. Pensativo não nota que na sua frente uma senhora de idade o olha. Ninguém sabe porque começam estas conversas. Que enigma existe no mundo que as possibilita. A verdade é que a senhora já idosa, dispara-lhe à queima-roupa: - O meu filho se fosse vivo teria a sua idade! O ex-combatente não responde. Alguma coisa dentro de si diz que caiu numa emboscada. O silêncio parece o melhor caminho. Mas a idosa tem no peito uma necessidade profunda de falar. Provavelmente a sua noite também foi branca. - Negomano. Que lugar deve ser aquele? Que sítio para onde levaram o meu filho. Ele escrevia-me a contar maravilhas do local. Mas eu sei que era para me acalmar. Dizia que tinha visto leões e comido churrasco de gazelas. Mas eu sei que não, que a maioria das vezes não se devia alimentar bem. Escrevia a contar que nunca tinha visto um inimigo. Mas eu sei que quem colocou a mina no caminho era seu inimigo. Só tinha aquele filho sabe? Era da sua idade, agora o meu marido faleceu e eu estou sozinha. “Já nada voltará a ser como dantes!” O ex-combatente chega ao destino. Um alívio. O autocarro pára e ele sai. Na paragem uma jovem mãe, sem complexos, dá de mamar ao seu filho de meses. Ato contínuo o militar vê imagens que não queria rever, que queria enterrar. Mistura imagens dos seus filhos, com aquele bebé ao colo de sua mãe. Mas o cérebro não o deixa afastar-se, há uma cara que se sobrepõe a tudo e a todos. O peito começa a asfixiar. O olhar inocente de uma criança mostra-lhe que “Já nada voltará a ser como dantes!”. Chega ao trabalho, e encara os mesmos nomes, e as mesmas caras de sempre. Ao lado da sua secretária está já o seu velho amigo de turma, e mais tarde colega na empresa que é propriedade de seu pai. Este seu colega fora esperá-lo à Rocha Conde d’Óbidos. Abraçaram-se. O ex-combatente sentiu que aquele abraço era de alegria por rever o colega, mas estranhamente passou-lhe pela cabeça que ele não tinha chegado de África. Não tinha chegado de África porque não chegara a partir. O pai havia telefonado a conhecidos, devedores de favores, e havia evitado a mobilização. Havia na alegria de rever o amigo, uma amargura pela injustiça do mundo. Já dono de um automóvel, oferecera boleia para casa. Pelo caminho queixou-se de ainda estar no serviço militar. Se soubesse tinha ido para África, dizia o colega de trabalho, filho do patrão, que não quisera deixar o filho partir. O colega falava enquanto guiava o Opel Cortina ao longo da avenida 24 de Julho: -Se soubesse que demorava tanto tempo, tinha ido, afinal voltam todos. Vi as fotos que me mandaste das tuas férias em Porto Amélia. Praias bonitas hein? E garotas? Tens de me contar isso tudo. Eu ainda aqui estou, fardado. Mas agora não há nada a fazer é aguentar o meu calvário. Afinal depois de acabar a tropa caso-me e tudo voltará a ser como dantes!
<< Página inicial